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Cruzeiro na década de 40 |
Em Cruzeiro Eu te Amo, mostro aos amigos que meu amor não é platônico. Muito fiz e acho que muito ainda farei, agora que trago nos ombros a responsabilidade de engrandecer a Academia Cruzeirense de Letras e Artes, cujo quadro tenho a hora de pertencê-lo.
E neste afã de súdito incontrolável, vou agora mostrar a todos àqueles que interessar o Prefacio e o Primeiro capitulo do meu livro "Amor e Ódio".
Prefácio
A escolha da cidade de Cruzeiro, para ser palco desta
história, tem muito a ver com o meu amor, por este torrão que lhe peguei
emprestado e não pretendo devolve-lo, tão cedo. Os demais nomes citados, nesta
trama vivida no período do Pós Guerra, são de pessoas verídicas, que em alguns
casos, infelizmente já foram para a Casa
Paterna, e outros ainda nos proporcionam a alegria de tê-los entre nós, e queira Deus, por muito tempo ainda.
Quanto a história em si, o maior feito não foi o fato de
tê-la criado, mas sim a difícil missão de inseri-la no contexto da comunidade,
sem contudo macular ou alterar a verdadeira história do povo, ou mesmo da
cidade. Se isto em sua opinião, eu não tiver conseguido, peço-lhe perdão,
talvez eu tenha menos perspicácia que você.
Mas contudo, para contar paralelamente a história de
Cruzeiro, saiba que procurei pessoas idôneas, e registros gráficos que em mãos
certas, sobreviveram às intempéries do tempo. E também, como filho adotivo só
poderia mesmo servir de alto-falante, para estes heróis remanescentes
desta época de ouro. Devo contudo dizer
que a leitura destas páginas deverá ser feita pura e simplesmente como um
romance, e jamais, como história da cidade, pois alguns detalhes foram
inseridos pelo próprio autor.
Para se perceber esta época basta observar: na casta Elisa, o exemplo das moças e rapazes da
época; em sr. Osvaldo, a força da
religião que pelo temor de Deus, tornava uma sociedade mais pura e
humana; em Da. Nair, que a cultura não a impedia de ser uma mãe terna e
carinhosa, além de humilde consorte. E mais, na família o respeito era
recíproco, e nos negócios, a palavra valia mais do que qualquer documento
assinado, salvo raríssimas exceções. Pena que estes parâmetros, mesmo tendo a
profundidade que tem, não são visíveis para a sociedade de hoje.
Não poderia também deixar de esclarecer aqui dois pontos,
o primeiro, é que no decorrer da minha história, aparece uma cola misteriosa.
Esta cola existiu nesta época, e era produzida a partir de raspas de couro. E se diferenciava das outras existentes no
mercado, por ser completamente inodora. Esta característica a fazia conhecida
em todo o estado. No entanto, não me foi possível identificar o fabricante, mas
contudo, fica aqui a minha homenagem anônima. O segundo, é que possivelmente
algumas ruas da cidade, na época em que acontece a história, ainda não
tivessem seus nomes definidos. Porém,
para se compreender melhor a geografia dela, foi então utilizada a nomenclatura
atual.
Agora, a nota triste fica para a trama vivida por Rodolfo
e Samuel. Porém vivê-la neste livro, é
uma parcela que dou para que o mundo jamais se esqueça da triste verdade que
foi o holocausto judeu. E também, para que a humanidade se conscientise, que temos uma dívida de omissão com este povo,
e que nem de rastro, haveremos de
paga-la .
No mais, dedico estas páginas a minha esposa Gracinha, e
meus filhos: Aline, Marcelli e João Carlos, que Deus ao me emprestá-los, com a
finalidade de enfeitar minha vida,
deu também formas aos meus sonhos.
João de Assis
o autor
Capítulo 01
Um apito longo e agudo, antecipa a fumaça branca liberada pela válvula
negra da locomotiva a vapor, que
passando pela cidade de Cachoeira Paulista, mergulha agora no grande vale do Embaú. Tendo de ambos os
lados o verde das plantações, algumas reses, e
o majestoso cenário da Serra da Mantiqueira, que fazem lembrar os
grandes Urais da Rússia, ou as montanhas verdes da Noruega. Era uma manhã de
sol, e os raios dourados do grande astro, cediam sua cor à folhagem dos
cafezais, e ao mesmo tempo, penetravam
dentro dos vagões onde estavam os
passageiros daquele horário. Era o dia primeiro de janeiro de 1946, e
avizinhava já a décima hora do dia.
Na cidade de Cruzeiro este trem era
esperado com muita alegria; pois ele estava trazendo o Padre Natal de Rosas,
que iria ser o substituto do Padre Gabriel Hiran Lopes de Oliveira. Na estação toda enfeitada,
estavam a banda musical da cidade; toda engalanada e as principais irmandades
filiadas à Matriz local, com seus uniformes oficiais. A ansiedade era geral
pela chegada de seu novo Pastor.
Ouviu-se um apito
distante, e logo o agente da estação que
encostado estava na porta central do prédio e trajava seu surrado terno
azul-marinho, camisa branca e gravata preta, retirou o relógio do bolso e sem
desencostá-lo da barriga, deu uma rápida olhada nas horas e assoprando então o
apito, caminhou em direção ao povo, gritou:
--- Está chegando... com trinta e cinco
minutos de atraso.
Ouviu-se um vozerio de
todos ao mesmo tempo que iam se arrumando em suas posições.
Enquanto isso, dentro do trem, Pe. Natal saiu do banheiro, caminhou se
firmando nas poltronas e quando se preparava para se assentar, ouviu de seu
companheiro de viagem a seguinte
observação:
--- É... vai ser uma terça-feira e tanto...
--- Não... acho que não, respondeu o Padre,
e concluiu. Cruzeiro é uma cidade pequena...
e pelo que estou sabendo haverá apenas uma pequena recepção na
estação... mas, é só ...
Á sua frente, isto é, sentado isoladamente na poltrona seguinte, viajava
um homem louro de cabelos grandes e barba de mais ou menos um centímetro,
crescida por igual, aparentando ter mais ou menos uns quarenta anos. Porte
atlético, olhos azuis, ombros largos, estatura alta e sua altura devia ser mais
ou menos um metro e oitenta
centímetros. Trajava calça de brim
escuro, paletó de casimira preta, camisa clara sem gravata, óculos de aro fino dourado e um chapéu preto
que não saía de sua cabeça. Seu olhar frio e vazio se perdia no horizonte, e
pôr várias vezes chegaram a se inundar durante a viagem, que ele prontamente
procurava dissimular.
A conversa na poltrona de trás, o fez
voltar a realidade. Percebeu ele que as casas começavam a aparecer na paisagem
junto com algumas ruelas. Um súbito tranco na composição e o trem começando a
perder velocidade, pôr fim parou na
estação. Este trem era composto pôr um vagão de carga, três vagões de
passageiros e uma locomotiva e ocupou toda a plataforma da estação.
Enquanto o padre se preparava para sair ao
encontro de seus fiéis, nosso misterioso viajante se levantou, caminhou por
dentro dos vagões até chegar ao ultimo,
e aí desceu e ficou perto do vagão bagageiro. Nesta hora o barulho da
manifestação popular, fez com que ele rodasse nos calcanhares e ficasse
observando a homenagem do povo cruzeirense. A banda tocava o Hino Nacional, as
mulheres juntamente com as crianças, agitavam bandeirinhas nas cores amarela e branca, cores do
Vaticano. Logo que o presbítero desceu
do vagão, foi muito cumprimentado pôr todos os presentes e
principalmente pelas autoridades civis da cidade. Depois então foi se formando
duas alas e o cortejo foi em direção a rua Eng. Antônio Penido, deixando para
traz a rotina ferroviária.
Neste momento um funcionário da Estrada de
Ferro, portando um quepe branco e vestindo um guarda-pó, também na cor branca,
bateu-lhe nos ombros e disse.
--- Senhor, as suas bagagens estão aqui.
--- He-hein?... ah, sim... pois
não... muito obrigado, respondeu o
passageiro com um sotaque estrangeiro bem carregado. Perto também, estava um
outro senhor, com uma carrocinha, vestindo
um guarda-pó azul e um quepe
branco, onde se lia numa plaquetinha
esmaltada a palavra “CARREGADOR”. E foi
este senhor mesmo quem perguntou ao visitante se ia precisar de ajuda, ao que
ele respondeu:
--- Sim... e de um taxi para o hotel.
--- Se é para o hotel?, não precisa de
taxi, não, pois ele fica aqui pertinho, e a gente pode ir a pé.
--- Então vamos, respondeu o passageiro.
Ajeitaram as quatro malas grandes e
pesadas no veículo, e se puseram então a caminho.
Na calçada da direita, do
prolongamento da pequena ruela, que liga a estação à rua Antônio Penido, mais
precisamente na esquina destas duas ruas, o viajante parou para dar uma olhada
na cidade, do seu lado direito estava o posto Coriolano, por sinal, era o único
posto de gasolina da cidade. A rua era calçada com paralelepípedos, nela, três
ou quatro adultos , umas poucas crianças brincando, e um automóvel Ford
estacionado a poucos metros da estação; tendo próximo a ele uma placa que dizia
“ALUGUEL” , faziam o movimento da cidade naquela hora. Ao grito de “chegamos”,
o forasteiro notou que o carregador
havia caminhado em diagonal empurrando sua carrocinha, e se encontrava
agora na calçada do lado oposto da mesma ruela,
descarregando as malas. Atravessou então a pequena via pública e ajudou
a transportar as malas para dentro do hotel. Hotel Brasil, era o que
dizia a placa pendurada na porta do estabelecimento. Depois de dispensar o
operário com uma boa gorjeta, apresentou-se na recepção. Uma senhora, deixando
o tricôt que estava fazendo de lado, o atendeu.
--- O senhor deseja um quarto?,
perguntou.
--- Sim.
--- Pois não, respondeu a atendente
pegando o livro de assentamentos e se preparando para escrever, perguntou: seu nome por favor?
--- Samuel Frank, respondeu o forasteiro, ao mesmo tempo
que entregava seu passaporte. A mulher pegou educadamente o documento, deu uma
olhada nas folhas, mas as informações que ele
continha estavam em outro idioma, e como não estava acostumada a lidar com
tal tipo de documento, disse meio sem jeito.
--- Pode deixar... aqui nós não
necessitamos de mais nada além do nome... cidade pequena, o senhor sabe como
é...
--- Sim, sim..., respondeu Samuel. Dizendo isto, pegou o documento e
colocando-o no bolso do paletó, indagou:
--- Onde fica o
quarto?
--- Por aqui, acompanhe-me por favor.
E deixando a pequena
sala, logo entraram num corredor que tinha mais ou menos cinco ou seis portas, e que terminava de
frente ao banheiro coletivo, o único por sinal destinado aos hóspedes.
Caminharam então por ele e na terceira porta do lado direito, a senhora
parando, falou ao mesmo tempo que a abria.
--- O quarto é este... o banheiro é aqui fora no corredor;o
café da manhã é servido das seis horas até as oito; o almoço de onze até uma e
meia e o jantar das cinco até as sete.
Esperamos que o senhor tenha uma boa estadia em nossa cidade, e se precisar de alguma coisa é só nos procurar.
Samuel, que já estava
com uma mala em cada mão, deixou-as no chão e voltou na portaria para buscar o
resto da bagagem. Depois disso fechou a porta, com o calcanhar para depois encostar-se nela com as costas. Ali permaneceu
de pé, deixando as malas se soltar de suas mãos, cerrou os olhos e deixou as
lágrimas fluir sem colocar obstáculo algum.
Cansado da extenuante
viajem, em meio às lagrimas adormeceu.
Quando acordou, seu corpo tinha deslizado pela porta e estava sentado no
chão, já era quase quatro horas da tarde. Mais calmo, mas ainda encostado à
porta, ali permaneceu procurando colocar sua cabeça em ordem. E começou a
contemplar o quarto e tudo que ele continha. Havia uma janela que dava para a
rua, e por isso ficava trancada com cadeado, evitava assim o hoteleiro, que
hóspedes inescrupulosos fugissem à noite, sem pagar as devidas diárias. Apenas
duas bandeirolas, podiam se movimentar para ajudar na ventilação. Uma cama de
madeiras roliças, em verniz claro, agregadas a um estrado de molas tendo em
cima um colchão de capim e um travesseiro de paina. Um lençol branco cobria o
colchão, e sobre ele dois cobertores de solteiro dobrados. Na parede um espelho grande servia
de penteadeira, compondo o referido móvel com um camiseiro de seis gavetas,
sendo duas pequenas feito em madeira escura, destoando assim da cor do verniz
da cama. Do outro lado, havia um guarda roupa de compensado com portas
arredondadas, também na cor escura. Ao lado do camiseiro, uma cadeira e em cima
dela uma bacia de louça, tendo dentro uma jarra com água para a higiene matinal
do hóspede. O chão de tábua corrida era muito bem encerado, pois brilhava bem.
O forro em tábuas de pinho de dez centímetros, tinha ao centro um fio elétrico,
que descendo intercalando os elos de uma corrente, sustentava um globo ovalado
na extremidade. Em suma, um hotel típico de uma cidade pequena, pensava
ele. Não era nada animador, levando-se em conta o conforto a que estava acostumado. De qualquer forma mesmo já
tinha decidido que não sairia do quarto hoje, isto ficaria para amanhã.
Entre cochilos
devaneios e as vezes verdadeiros
delírios, a noite que parecia interminável chegou ao seu final, mostrando no
cinzeiro pelas pontas de cigarros nele contidas, quão difícil foi a sua
passagem. Samuel esperou dar sete horas para tomar seu café e começar a tarefa de exploração da cidade. Cidade esta
que de agora em diante, ficaria sendo também a sua cidade.
Após um magro café da manhã, onde havia só pão, manteiga e queijo fresco, Samuel pegou seu chapéu, dirigiu-se ao espelho que ficava na porta do pequeno refeitório, e ajeitou-o na cabeça. Se olhou novamente, se curvou um pouco e mudou sua posição, outra vez tornou a se olhar, e resolveu incliná-lo para a direita, e por fim deu de ombros saindo do recinto. Um observador, se ali estivesse, diria que ele não tinha nenhuma intimidade com o chapéu que usava. Entregou a chave na recepção, à mesma senhora que o atendera no dia anterior, e saiu na porta parando na calçada sem saber que rumo tomar. O sol já havia saído e pelo seu banho de luz matinal junto com aquele céu limpo, prometia um dia forte de muito calor. Enquanto decidia o seu objetivo, andou até a porta do bar Marcondes que ficava colado ao prédio do hotel. Ao se aproximar da porta, ouviu os clarins do Repórter Esso. Essa vinheta era conhecidissima, e desde a guerra que terminou no ano passado, o povo já havia adotado este noticiário que a Rádio Nacional do Rio de Janeiro colocava no ar quase que de hora em hora. No auge da guerra então sua credibilidade era tanta, que o seu locutor exclusivo, Heron Domingues, dormia nas dependências da própria Radio, para noticiar sempre que acontecia um fato novo. E quando Samuel chegou na porta , ouviu então a voz firme e forte do locutor.
“--- Aqui fala o repórter
Esso, porta voz radiofônico da Esso Standard do Brasil, trazendo as últimas
notícias da United Press International.
Rio - O povo brasileiro
anseia por medidas mais enérgicas, afim de conter as investidas do partido
comunista. Estas foram palavras ditas pelo novo Presidente da República,
General Eurico Gaspar Dutra, num coquetel servido ao Estado Maior das Forças
Armadas, ontem à noite no palácio do
Catete.
Roma - Sua Santidade o Papa
Pio XII, retornou à residência de Castel Gandolfo, afim de descansar uns dias ,
depois das solenidades que presidiu durante os festejos do Natal e Ano Novo.
Nuremberg - Já é do
conhecimento dos líderes das grandes nações aliadas, o local escolhido para o
julgamento da cúpula do governo alemão. A cidade alemã, reúne todas os
requisitos para sediar o grande evento, principalmente por estar localizada
dentro do palco dos últimos acontecimentos.
Enquanto o locutor fazia a
propaganda dos produtos da Esso , Samuel entrou no bar para comprar cigarros.
.--- Bom dia.... cigarros...
o senhor tem Columbia?
--- Bom dia, respondeu o
senhor que estava varrendo o salão, e encostando imediatamente a vassoura em
uma das mesas de sinuca, caminhou para dentro do balcão, enquanto respondia.
Tenho ... tenho Lincoln, Astória , Continental, Yolanda... tenho quase todos...
--- Eu quero um Columbia, eu
me dei muito bem com ele.
--- Pois não, aqui está.... E
enquanto pagava e aguardava o troco, voltou
sua atenção para o noticiário do radio, que recomeçava.
--- E eis a nota final:
Rio - A Assembléia
Constituinte, eleita pelo sufrágio popular e que apresentou o seguinte quadro:
PSD com 54% dos votos, UDN com 28%, PTB com 7,5%, PCB com 4,7%, e os demais
partidos com 7,3%, se reunirá de agora em diante afim de votar a nova
Constituição Brasileira, que será a Carta Magna do Governo pós-Estado Novo. O
repórter Esso se despede agora prometendo voltar às nove horas, ou a qualquer
momento em edição extraordinária. Até lá... e lembre-se ... só Esso dá ao seu
carro, o máximo”
Samuel que tinha recebido seu troco, e estava na porta do bar ascendendo
um cigarro enquanto esperava o noticiário terminar, saiu e seguiu pela rua Antônio Penido. Passou pelo o Capitólio e
notou se tratar de um cine teatro . Na
esquina da rua Major Hermógenes estava o Correio, e pouco á frente dele terminava o calçamento. Daí para a frente, a
rua continuava em terra batida, tendo à sua esquerda os galpões barulhentos de
uma fábrica, e à sua direita, casas residenciais que iam até o seu final. Virou
na rua João Novaes e caminhou na calçada da direita, sempre com passos lentos
procurando observar tudo ao seu redor. Na frente da igreja de Santa Cecília,
estava o padre Natal lendo seu Breviário à sombra das árvores. Samuel parou por
um instante e ficou a contemplar o religioso. O padre usando uma batina preta,
com saliente colarinho branco e uma coroinha raspada na parte posterior da
cabeça, passeava de um lado para o outro da pequena praça, em tirar os olhos do
livro de oração. Samuel então sentou-se num banco de tábuas que tinha no canto
da pracinha, e ficou silenciosamente com o olhar fixo na figura do padre. Seus
pensamentos começaram uma viajem, e como num abrir de cortinas, abriu-se a
praça dos Portões de Ferro, pouco alem dos Jardins Saxônicos. O cheiro de
verduras e legumes podres, aves barulhentas, um vozerio alto, provocada pelos
feirantes, mendigos, carregadores, homens mulheres e crianças. Todos praticando
a mais primitiva forma de comércio.
--- Olha o frango...
--- levem este...
--- Sapatos em bom estado... preço barato...
Judeus barbudos discutiam
longamente para economizar meio slots, numa algazarra tremenda. Poloneses e
judeus conviviam lado a lado numa terra prestes a mudar de dono. A invasão da Polônia era iminente, apenas
questão de horas.
Hans,
contornou a balbúrdia do mercado e entrando numa lanchonete, foi sentar-se
junto a grande janela que dava visão completa para a rua. Fazia frio, muito
frio, o bafo quente produzido pela
lareira embaçava o grande vitrô. Um
garçom serviu um chocolate quente que Hans segurou com as duas mãos afim de
aquece-las. Tomando aos goles, de vez em quando passava a mão estendida e em
círculos no vidro para clarear a sua visão. Do outro lado da avenida um homem vestindo
um casaco longo e grosso, uma boina de lã preta e óculos com aros de tartaruga,
parou na calçada, olhou para os dois lados da avenida, e atravessou-a em
direção ao café. Hans que observava a cena com apreensão, de dentro do
estabelecimento, olhou também para os dois lados da avenida. Quando o estranho
aproximou da calçada do café, Hans se
levantou para ir ao seu encontro. Ao
abrir a porta deparou com um endivido vestido de preto, barbas grandes lendo um
livro grosso, caminhando na mesma calçada em que estava Hans. Num
movimento rápido, este homem sacou de uma arma que estava dentro do
livro, e disparou quatro tiros no
estranho de boina preta, que caiu antes mesmo de alcançar a calçada. Seus
óculos rolaram pelo chão enquanto seu corpo esvaía-se em sangue, já sem vida.
Se rápido foi para atirar, mais rápido foi para sair de cena. O barbudo que
mais parecia um judeu religioso, desapareceu sem deixar vestígios. Hans saiu do
café, passou pelo corpo caído, caminhou para o mercado da praça Portões de Ferro,
enquanto se formava um aglutinado de pessoas, em volta do cadáver.
--- Olá como vai o senhor? Disse o padre.
--- Hã? eu... oh sim... muito bem... estava distraído,
respondeu Samuel.
--- Bem eu vi como estava me olhando, aí pensei deve estar
querendo falar comigo. Mas para saber tinha que perguntar, não é mesmo?
--- Não padre... eu acabei de chegar na cidade e estou dando
uma volta para conhece-la... e acabei sentando aqui para descansar.
--- Eu não sei de onde, mas me parece que eu conheço o senhor
de algum lugar....,disse o padre.
--- Eu sei ... o senhor chegou ontem no trem... e... eu também
estava nele....
--- Oh!... sim, agora me lembro... e então, está gostando da
cidade?
--- Sim, sim... eu gosto de cidade calma... pequena.
--- Quer dizer então que o senhor não é daqui... de onde então?
--- Eu sou europeu.... mas o senhor me dê licença, porque
preciso continuar com a minha caminhada... e numa outra ocasião a gente
conversa mais... até logo... e foi saindo deixando o padre encabulado com a sua
evasão.
--- Até logo... apareça quando quiser...
--- Obrigado... até mais, respondeu Samuel estando já quase no meio da rua Jorge
Tibiriçá, indo em direção à rua João Novaes. Chegando do outro lado, olhou para
o padre, mas este tinha já os olhos no livro e agora estava sentado. Enquanto
caminhava, Samuel voltou a pensar na cena que momentos atrás o absorvia.
Varsóvia... na verdade eu me salvei por um triz, se eu tivesse falado com
Shultz, aquele judeu teria matado os dois, eu e ele... sorte minha, azar o
dele. Ele era pago para nos entregar os judeus mais nobres, eu não, ganhava meu
soldo para servir e o Führer... Ele era alemão, mas nos vendia os judeus, fazia isto por dinheiro...
eu ao contrário, amava a Alemanha e no fundo mesmo, executava ordens... e o que adiantou a sua
morte... se no dia seguinte mesmo, 1° de setembro, a Polônia foi invadida. Em
poucos dias o Estado Maior já conhecia todos os endereços pelos quais Shultz
tinha morrido, inclusive o do seu assassino... que pagou com a vida...
Mas que é isso?. O barulho estranho junto a um odor muito
forte, trouxe Samuel a realidade novamente. Samuel ao deixar o padre seguiu
pela rua João Novaes e virou na rua Quatro, passando pelo local onde aos
domingos funciona um mercado livre, agora estava em frente a rotunda e portanto
próximo ao chiqueiro de porcos da prefeitura, que fica no prolongamento da
mesma rua. Esta região da cidade era bem desabitada, havia pouquíssimas casas e
era bem espalhadas. Deste ponto Samuel resolveu voltar. Entrou de volta no
Hotel, almoçou e tirou um cochilo.
As duas horas em ponto retornou
à caminhada. Saiu do hotel, subiu a Major Novaes e virou à direita na Jorge
Tibiriçá. Na esquina do Empório da Praça, parou e ficou observando. Sua atenção
foi chamada para uma tropa de burros, que estava em frente do Empório. O
condutor fazia compras neste armazém. Samuel achou estranho aqueles animais, em
número de oito ao todo, ali parados esperando seu dono ser atendido. Por ter
saído de um centro maior, não estava acostumado a ver tropas de burros
transitando pelas cidades. Coisa que por aqui é normal, por que elas é que
abastecem as residências com lenha. Ali ficou até que o lenheiro chegou com
suas compras dentro de embornais e os pendurou na canga de carga, que cada um
transportava já vazia. E fazendo um barulho com a boca, os animais se alinharam
em fila indiana e se puseram a andar. O lenheiro descalço e sujo, atravessou o
chicote com cabo de pau mulato, nos ombros e por trás da nuca e pendurou nele
seus braços. Os burros seguiram pela Jorge Tibiriçá, enquanto seu dono seguia
atrás, sorvendo um bom pedaço de rapadura.
Samuel ficou ali na esquina por uns momentos,
vendo o lenheiro se distanciar. À sua frente ficava o Passeio Público, que pelo
horário, tinha seus bancos vazios da
mesma forma estava também o coreto, que proporcionava belos fins de semana, aos
amantes dos concertos de banda , coral e serestas. Resolveu então seguir pela
rua Jorge Tibiriçá e explorar o lado direito da cidade. Andando calmamente, atravessou a linha férrea
e continuando na mesma rua, chegou ao seu final. Ali tinha que se decidir
novamente se virasse à esquerda e subia até a “rua da boiada” ou pulava a cerca
de trilhos, oxidados pelo tempo, e lisos pelo passar das mãos das pessoas que
ali paravam, para ver a paisagem verde daquele vale. Estava ele diante do terreno de propriedade do Frigorifico. Um
córrego o cortava ao meio. As reses leiteiras pastavam enfeitando o lugar,
enquanto esperavam a hora da ordenha. Ao fundo ficava a majestosa serra da Mantiqueira. No caso de Samuel em
especial, era um breve retorno à sua terra de origem. Olhar para a serra, era
como se ele viajasse no tempo, logo seus olhos embaçavam, na garganta ficava um
nó e as lágrimas despencavam. Para desvencilhar-se da tristeza, virou a
esquerda e começou a subir a rua, tocado profundamente pela paisagem, nem se
apercebera que o calçamento já havia terminado muito antes de findar a rua
Jorge Tibiriçá. Seguia ele então naquela via sem calçamento, poucas casas e
alguns terrenos baldios. Isso, do seu lado esquerdo, porque do outro, o acompanhava a cerca de trilhos que separava
as terras do frigorifico. Sua tristeza se dissipou quando ouviu a gritaria dos
garotos. Uns gritavam “lá vem eles...” outros, “sai da frente” e
outros mais, “cuidado!”. Num instante, treparam todos na cerca de
trilho. Um senhor já de meia idade, abriu a porteira e ouviu-se o barulho surdo
dos cascos de animais em disparada. Rapidamente Samuel percebeu o que estava
acontecendo, e procurou se resguardar, subindo também na mesma cerca.
Era o gado que estava chegando da Estação
de Rufino de Almeida, e vinha escoltado por cavaleiros, até Cruzeiro. Este gado entrava pela já
afamada “rua da boiada”, e chegando no final desta, atravessavam a rua Quartim
Barbosa, para entrar direto. no portão do frigorifico. Este ultimo estágio, era
o prazer da garotada e dos adultos que por ali
coincidentemente se encontrasse neste momento. Pois nesta hora, dois peões avançavam à
frente dos bois e se colocavam com suas montarias no meio da rua Quartim
Barbosa para impedir que o gado virasse à esquerda ou à direita. Na maioria das
vezes isto dava certo, mas em algumas ocasiões acontecia de escapar algum
animal mais treteiro. E hoje era exatamente um dia igual a esses poucos dias. Uma rês de pelo branco com largas manchas
pretas no lombo, ao sair da “rua da
boiada’, virou rapidamente para a
direita, antes de passar pelo peão que fazia o falso corredor, Quando isto
acontecia, o cavaleiro que estava postado no meio da rua não podia ir à sua cata. porque corria o
risco de mais reses também fugir. Quem
saia então, era o peão imediatamente
seguinte, isto é, o mais próximo do local da fuga. E hoje, como presente para Samuel, o peão imediato era João Agripino, crioulo forte, boiadeiro de
muitos anos, experiente e arrojado. Quando ele percebeu o desvio do animal,
esporeou com violência o seu cavalo. O “bicho” levantou a cabeça e se acelerou no
canto da manada, abrindo caminho a força. Ao chegar na rua Quartins, obedecendo
o comando firme transmitido pelas rédeas, o cavalo fez o pião tão rápido que
quase ajoelhou. O corpo de João Agripino foi jogado para o lado, e tocou o chão
com o joelho direito. Outra esporada firme, e ele se impulsionou com as patas
traseiras, se arremessando á frente. Agripino agora foi jogado para trás e
chegou a encostar as costas na anca do animal. Seu chapéu caiu e se misturou na
terra solta que a manada levantava. Mesmo quase deitado, deu rédeas para o
animal, e sem se segurar na cabeça do arreio, equilibrou-se novamente. A
quarenta metros mais ou menos, já rodava seu laço por cima da cabeça. E
gritando “eia! eia! eia!”, arremessou-o. Seu laço se abriu e se encaixou nos dois chifres do animal fujão.
Imediatamente Agripino deu duas voltas
com a corda, nas pontas do arreio, e puxou o freio com tanta força, que
parecia querer rasgar a boca de sua montaria. Foi o suficiente. Seu cavalo
estacou, suas patas dianteiras deslizaram levantando poeira. A rês, se dobrou
primeiro ajoelhando para depois rolar três vezes. A meninada gritava e se
sentia premiada por ter presenciado tal cena. Samuel também estava estupefato
de ver a destreza de João Agripino, que agora calmo conduzia a caipora para
dentro do cercado.
Terminada
a ação, a porteira se fechou e Samuel retornou à sua caminhada. Voltando na rua Quartim Barbosa, virou na Dr. Celestino. Fazia muito calor,
tanto que ele tinha tirado o paletó e carregava-o pendurado nas costas. Mais à
frente parou nas proximidades do campo do Royal. Ali permaneceu vendo a
rapaziada jogar futebol. Apesar de não conhecer direito o esporte, gostou de
ver a agitação que faziam correndo atras de uma bola, naquele campo de terra.
Permaneceu por um bom tempo tentando compreender as regras do jogo, depois
deu-se por vencido. Vencido pelo jogo
que não conseguia entender e o cansaço
que lhe abatia. Tratou então de ir para o hotel, afinal já era quase seis horas
e seu estômago começava a reclamar. Continuando então na mesma rua, depois de
passar pêlos trilhos da estrada de ferro, caminhou ao lado do muro branco do
campo do Cruzeiro F. C. e virou à esquerda na rua Major Novaes, descendo até o
Hotel.
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